Santa Catarina guarda segredo genético: um dos tipos de sangue mais raros do planeta
Sangue raríssimo tem nove doadores em SC e pode definir entre vida e morte em cirurgias
Foto: Divulgação / Hemosc
Apenas 12 pessoas estão catalogadas no Brasil como doadoras de sangue Vel, nove delas em Santa Catarina. Trata-se de um tipo raríssimo, cuja ausência do antígeno Vel torna cada transfusão um desafio médico e científico.
O sangue Vel-negativo é tão incomum que, quando necessário, pode significar a diferença entre a vida e a morte em uma cirurgia. Essa raridade fez de Santa Catarina, e especialmente da região norte do estado, uma referência nacional em estudos sobre sangue raro, colocando a ciência e a solidariedade lado a lado em uma corrida silenciosa por compatibilidade.
O que é o sangue Vel

Quando pensamos em tipos sanguíneos, lembramos logo de A, B, AB e O, com fator Rh positivo ou negativo. Mas a ciência já identificou mais de 40 sistemas sanguíneos reconhecidos internacionalmente e mais de 380 antígenos diferentes nas hemácias. O sangue Vel é um desses casos raríssimos.
Segundo a hematologista Dra. Daniela Nos, “o sangue Vel é definido pela presença de um antígeno chamado Vel, presente na superfície das hemácias. A maioria das pessoas tem esse antígeno e, portanto, é Vel-positiva. Quem não o possui é Vel-negativo — uma condição extremamente rara”.
Por que ele é tão raro

No Brasil, há atualmente 12 doadores de sangue Vel-negativo oficialmente catalogados no Cadastro Nacional de Sangue Raro (CNSR), sendo nove identificados pelo Hemosc em Santa Catarina. O estudo que revelou esses casos foi realizado em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e analisou cerca de 17 mil amostras de sangue.
Essa concentração chamou atenção da equipe de pesquisa. “O fenótipo Vel-negativo é mais comum em populações caucasianas. Como o Sul tem maior presença dessa origem, é uma região estratégica para localização desse tipo de sangue”, explica a bioquímica Danielle Siegel, autora do projeto Vel no Hemosc.
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A genética por trás do mistério
O sangue Vel-negativo tem origem genética: é causado por uma variação no gene SMIM1, responsável pela produção do antígeno Vel. Essa mutação é hereditária e tende a se repetir dentro de famílias, o que ajuda a explicar a concentração em determinadas regiões.
“A herança é recessiva — a pessoa precisa receber o gene alterado tanto do pai quanto da mãe”, explica a Dra. Daniela Nos. “Por isso, ele pode atravessar gerações sem ser percebido, até aparecer em um exame detalhado ou numa transfusão.”
Um risco em transfusões

No dia a dia, uma pessoa Vel-negativa leva uma vida normal. O problema surge apenas quando há necessidade de transfusão. “Se um paciente Vel-negativo recebe sangue comum, o corpo pode reconhecer o antígeno Vel como algo estranho e produzir anticorpos anti-Vel. Numa próxima transfusão, esses anticorpos podem causar uma reação hemolítica grave, com risco de óbito”, alerta a médica.
Esse risco reforça a importância do mapeamento e do registro de doadores raros. Quando há uma emergência, cada doador identificado pode ser decisivo — e muitas vezes é o único compatível disponível em todo o país.
Uma descoberta que conecta ciência e solidariedade

Os doadores identificados pelo Hemosc estão distribuídos em cidades como Blumenau, Criciúma, Joinville e Lages. O estudo apontou que, estatisticamente, um a cada sete mil catarinenses pode ter esse tipo de sangue — um índice considerado alto para um fenótipo tão incomum.
“Foi um trabalho pioneiro”, conta Danielle Siegel. “O Hemosc se tornou referência nacional em sangue raro e chegou a enviar sangue Vel-negativo para Recife, em 2023, para um paciente com anemia falciforme e doença renal crônica que precisava de uma cirurgia de urgência.”
A logística e os desafios

Quando há demanda, o Hemosc busca primeiro no próprio cadastro e entra em contato com os doadores compatíveis. Se não houver bolsas disponíveis, o pedido é encaminhado à Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, que aciona outros hemocentros por meio do Cadastro Nacional de Sangue Raro.
O processo, porém, exige sincronia e agilidade. “O maior desafio é manter o cadastro atualizado. Mudanças de endereço ou telefone dificultam o contato com doadores. Como são pessoas únicas, qualquer falha pode comprometer uma transfusão”, explica Danielle.
Um segredo catarinense

O fato de Santa Catarina concentrar a maioria dos doadores catalogados também tem explicação cultural e genética. “Provavelmente reflete uma combinação familiar e regional”, comenta a Dra. Daniela Nos. “Os pacientes catalogados pertencem a uma mesma família, e Santa Catarina tem uma população com forte descendência europeia, o que pode aumentar a chance de encontrar esse fenótipo raro.”
Ela também destaca o mérito da Hemorrede estadual. “Isso mostra o quanto os profissionais da região são eficientes em identificar e catalogar doadores raros”, completa.
Um novo projeto em andamento

O Hemosc e a UFSC desenvolvem agora um novo estudo voltado ao antígeno Lan, ainda mais raro que o Vel. Até hoje, não há nenhum doador Lan-negativo conhecido no Brasil, e o objetivo é identificar possíveis portadores dessa característica em Santa Catarina.
Essas pesquisas exigem investimento e continuidade. “É fundamental que existam editais e políticas de incentivo voltadas à ampliação dos cadastros de doadores de sangue raro”, reforça Danielle. “Cada nova descoberta é uma chance de salvar vidas.”
Solidariedade que circula

A doação de sangue é um ato simples, mas essencial para o sistema de saúde. No caso dos sangues raros, ela pode ser literalmente a diferença entre a vida e a morte.
“Doar sangue é uma atitude necessária, de solidariedade, cidadania e amor”, resume Danielle Siegel. A hematologista Daniela Nos complementa: “O cadastro de doadores raros é um patrimônio coletivo de segurança. Ter esses doadores registrados permite que o sangue certo chegue à pessoa certa — mesmo que esteja a quilômetros de distância.”
Como isso impacta sua vida
Saber da existência de tipos de sangue raros, como o Vel, é mais do que uma curiosidade científica — é um lembrete de que cada doação conta. Mesmo que a maioria da população nunca precise desse tipo específico, o ato de doar mantém viva a rede que garante segurança a quem enfrenta cirurgias, tratamentos e emergências.
A identificação de doadores raros em Santa Catarina mostra o quanto a solidariedade pode se transformar em ciência aplicada. Cada doador descoberto é uma nova chance de salvar alguém. E é por isso que o Hemosc reforça: quem doa sangue ajuda a escrever histórias de vida — inclusive as que ainda não sabemos que um dia precisaremos salvar.
Max Pires
Já criei blog, portal, startup… e agora voltei pro que mais gosto: contar histórias que fazem sentido pra quem vive aqui. Entre um café e um latido dos meus cachorros, tô sempre de olho no que importa pra nossa cidade.