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Coluna: A alvorada de Ângela

Conto inspirado na história de vida da minha nona, uma homenagem que se estende às valorosas agricultoras do passado, exemplos de força, dedicação e resiliência.

22/08/2021

Por Sônia Pillon

Não saberia dizer precisamente que ano foi. Faz tanto tempo que a conheci! Só sei que foi no início dos anos de 1920. Eu era jovem, na “flor da idade”, como se dizia naquela época. Devia ter uns 16 anos, não mais do que isso. Nossas famílias eram vizinhas, descendentes de italianos. Eles também cultivavam grandes parreirais de uvas e produziam o próprio vinho, esmagando as uvas com os pés, como nós. Plantavam de tudo um pouco, tinham uns poucos cavalos, algumas vacas e aves.

A dona da casa se chamava Ângela, que mais tarde vim a saber que o nome era originário do grego e que entre outras coisas queria dizer “anjo, mensageira, pessoa bondosa, que quer manter um clima de harmonia no lar, leal com as pessoas que a rodeiam”.

Analisando o jeito dela, diria que não poderia ter um nome melhor. Casada e com 10 filhos pequenos para criar (uma verdadeira ‘escadinha’), Ângela há muito havia deixado a vaidade de lado. Pouco a pouco, o viço da juventude deu lugar a uma expressão cansada e vincos profundos na face. E o olhar, sério, demonstrava a preocupação para que a família estivesse sempre assistida.

Ângela levantava de madrugada para ordenhar a vaca e tirar o leite, que era servido ainda morno para as crianças. Levantava antes mesmo do marido e de qualquer um dos filhos, que precisavam andar quilômetros para frequentar a escola rural mais próxima. Quando voltavam, famintos, a ‘bóia’ já estava à espera, naquela mesa rústica de madeira, onde não faltava a bela polenta e as delícias vindas diretamente da horta. O serviço da casa e a lida na roça pesavam, mas ela nunca se queixava.

Me perguntava se ela chorava sozinha, nos momentos em que a carga se tornava pesada demais. Se ela chorou, foi escondido, nunca vi. – É a minha obrigação de mulher, pensava ela, enquanto soltava um suspiro. Não se revoltava com a situação, procurava fazer o melhor possível. Com um misto de conformismo e determinação, Ângela passava os dias.

E assim os filhos foram crescendo e depois cada um deles tomou seu rumo na vida. Uns optaram por continuar ligados à terra, seguindo a trajetória dos imigrantes. Outros decidiram mudar para outras cidades e outros ainda romperam as fronteiras rio-grandenses. Queriam seguir com os estudos, ter uma vida menos sacrificada, usufruir dos recursos e das facilidades da cidade grande.

Com a experiência que tinha em relação à vida e às responsabilidades com a casa e a família, ela me ajudou bastante, solícita e sempre com uma palavra de incentivo. Éramos grandes amigas.

Certa vez, quando a fui visitar, ela me recebeu na cozinha com um olhar triste. Disse que não precisava mais servir o leite ainda quente, tirado da vaca, ouvir a agitação na grande mesa, nem precisava mais ralhar com os filhos, como fazia quando havia algazarra durante as refeições. Naquele dia, me confessou que sentiu saudade daqueles tempos. Mas nona Ângela, como a chamavam os netos, era de poucas palavras. Agia mais do que falava. Guardava os sentimentos para ela mesma.

Uma noite tive um sonho estranho. Sonhei que vi minha amiga bem jovem, vestida como uma rainha, sorriso no rosto, dançando e cantarolando quando a alvorada despontou e os raios solares invadiram o campo. Quando acordei, fiquei intrigada. Pouco depois, soube que Ângela havia partido. Tinha cumprido a missão. Se foi com a certeza do dever cumprido.

Por

Sônia Pillon é jornalista e escritora, formada em Jornalismo pela PUC-RS e pós-graduada em Produção de Texto e Gramática pela Univille. Integra a AJEB Santa Catarina. Fundadora da ALBSC Jaraguá do Sul.

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