Opinião: Sobre sandálias e chuteiras coloridas
Futebol, memória e reencontros: o que chuteiras e plataformas revelam sobre quem somos?
Sandália plataforma e chuteira lado a lado simbolizam transformações pessoais. Foto: Banco de imagens/Creative Commons
Sempre fico desconfiado com as mudanças repentinas. Foi o que aconteceu com a Maria Luiza.
Ela era jovem e festeira. Morena, de cabelos longos e uma estatura de dar inveja. Ainda assim, usava sapatos muito altos, que a deixavam chamando atenção, aonde chegasse.
Tinha vários contatinhos e recebia convites para festas particulares pouco frequentadas – mas bem frequentadas – na cidade.
De uma hora para outra, sumiu. Ficamos preocupados. Fomos até a casa que ela alugava de um casal: “Pagou o aluguel, pegou as malas e foi embora”.
Tentamos contato. Nunca mais atendeu as chamadas, nem retornou mensagens e apagou a rede social.
Só tivemos certeza de que não tinha sido abduzida por uma rede de tráfico de mulheres, porque conhecíamos a avó dela, a Zilma, que disse que ela voltara as suas origens e que estava bem. Vez por outra pegávamos atualizações com a velhinha: tinha contraído matrimônio e estava grávida.
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Passados uns dois anos, apareceu convite dela no Instagram. Tinha mudado tudo. O estado, o cabelo e o jeito de posar para as fotos. O nome. Quero dizer, passou a usar o nome composto completo. Antes era só Lu, a boêmia.
Pensei: “Duvido que ela tenha se desfeito daquelas sandálias plataformas coloridas: douradas, prateadas e vermelhas”. Só assim eu acreditaria nessa nova vida na família tradicional brasileira.
Até que ela entrou em contato e disse que estava com saudade. Fizemos uma chamada de vídeo e tomei coragem de perguntar o que ela tinha feito com as sandálias. A resposta foi: “Estão bem guardadas”.
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Vez por outra, o pessoal do trabalho me chama para o futebol das terças. Já lhes disse que depois de mais de 20 campeonatos da firma – sem lesão grave e vendo vários colegas machucados e sofrendo cirurgias – larguei o futebol há um bom tempo.
Só tem registro em fotos. Isso é bom. Pois se houvesse vídeos, minha fama de bom jogador, poderia ser desmascarada.
No início do ano, a fabricante Mizuno, relançou uma chuteira clássica, porém sobre uma estrutura de tênis. Fiquei seduzido e tive uma ideia:
Juntei todas as chuteiras coloridas que eu ainda mantinha em casa, de campo, society e futsal – há uns oito anos sem uso – e as vendi no brechó, coloquei um pouco de dinheiro em cima e comprei o tênis que imita uma chuteira.
Na semana passada, recebi convite de aniversário de criança. Para comemorar os 12 anos do garoto, o convite dizia: “Vamos ter um dia divertido, com direito a futebol, hamburguer e picolé”.
Corri na loja de esportes e comprei uma chuteira. Talvez eu devesse ter me certificado de que esse futebol seria extensivo aos adultos…
No sábado de manhã, a caminho da festinha, fomos confirmar qual o número da choupana e percebemos que o aniversário seria no dia seguinte. Foi a minha ansiedade o motivo de errar o dia?
No domingo, perto das 12h, chegamos ao clube. O termômetro marcava 31 graus. Disfarcei, dei desculpas de que só tinham crianças jogando e fiquei conversando amenidades com os adultos. Na verdade, eu estava era com medo de ter um infarto.
Em tempo, recentemente a Maria Luzia, digo, a Lu, voltou a usar suas sandálias.
Parafraseando Millôr Fernandes:
Hipocrisia: um sujeito verdadeiramente sincero vive sempre em pânico de que a qualquer momento descubram o hipócrita que ele é.
Marcelo Lamas
Marcelo Lamas Cronista, autor de 4 livros. Sou gaúcho radicado em Jaraguá, há 3 décadas, porém, estou mais para jaraguaense, nascido no RS. Frio, doces, cafés, gatos, livros, futebol e Coca-Cola são as minhas preferências.