4 mil km a pé: após passar por Jaraguá, argentina conclui maior trilha da América

Foto: arquivo pessoal
A argentina Julieta Santamaria calçou as botas, apertou a mochila nas costas e partiu. Sozinha, a jovem de 26 anos atravessou o Brasil a pé pela maior trilha de longo curso da América Latina: o Caminho da Mata Atlântica. Foram 195 dias e mais de 4 mil quilômetros percorridos por florestas, montanhas, praias e comunidades, cruzando cinco estados brasileiros — diversas cidades em SC, como Jaraguá do Sul, Schroeder e Corupá —, nos quais viveu momentos marcantes da jornada.
No último sábado, 7 de junho, em meio à neblina dos Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul, Julieta concluiu a travessia que começou em março de 2024 no Parque Estadual do Desengano, no interior do Rio de Janeiro. A chegada coincidiu com o Dia Mundial das Trilhas, e coroou uma experiência que ela descreve como transformadora: “Não foi só uma conquista minha. Foi de todos que me acompanharam. A caminhada foi nossa.”
Assim, a jovem entra para a a história como a primeira pessoa a percorrer integralmente o trajeto.
O começo de um sonho
A inspiração veio durante uma conversa casual num hostel em Ilhabela (SP), onde Julieta estava hospedada. Um amigo mencionou o Caminho da Mata Atlântica e lançou o desafio: “Acho que você consegue fazer.” Ela demorou três dias para digerir a ideia, e decidiu: faria.
Veio então um período intenso de preparação física, mental e emocional. Treinos com mochila, mudanças alimentares, pedaladas ao redor da ilha, banhos frios no mar para testar os limites do corpo. “Mas o mais difícil foi manter a mente tranquila. Caminhar sozinha exige fé.”

De Buenos Aires para a construção de uma nova Julieta
Vinda da região metropolitana de Buenos Aires, Julieta cresceu mais longe da natureza. No Brasil, encontrou o que chama de “primeiro contato real com o mato”. A cada passo, um mergulho mais profundo na biodiversidade e nos saberes das comunidades locais. “Aprendi que ninguém cuida do que não conhece. E que a floresta ensina a escutar.”

Essa reconexão com o ambiente a transformou. “Me descobri mais leve, mais amorosa, mais paciente. Sou mais eu com os outros. E sei que essa mudança é para sempre.”
A conexão não ficou só na natureza. Em muitas cidades, Julieta foi acolhida por desconhecidos que viraram amigos, como em Ilhabela, onde ela morou por oito meses antes da trilha, e em Brusque, onde participou da Corrida do Pelznickel e conheceu o “Papai Noel do Mato”.

Acolhida em Jaraguá do Sul e região
A travessia por Santa Catarina foi uma das mais marcantes da caminhada, para a jovem argentina. E ela lembra com carinho a passagem por Jaraguá do Sul, Schroeder e Corupá. “Conheci pessoas lindas. Participei do Festival de Escalada no Parque Estadual do Braço Esquerdo, fui recebida por moradores locais e até chamada de ‘filhinha’”, lembra.
O acolhimento foi articulado por um voluntário do Caminho da Mata Atlântica, que mobilizou uma rede de apoio para hospedá-la nas casas da região.
Ali, a trilha deixou de ser só um percurso. Virou laço.
“Até hoje falo com essas pessoas. E esse vínculo é um dos maiores presentes que a caminhada me deu. Eu me sentia em casa mesmo em lugares onde nunca havia estado. Em Jaraguá, fui acolhida com tanto carinho que parecia ter família ali.”
A conquista compartilhada
Apesar dos inúmeros desafios — desde trilhas fechadas e escassez de água até momentos em que teve que lidar com a negativa de proprietários em permitir a passagem — Julieta afirma que nunca perdeu o propósito. “Todo dia eu dormia feliz. Mesmo cansada, mesmo com dor, sentia que estava onde precisava estar. Cada lugar tinha sua beleza. De todas as adversidades, eu aprendi.”
Os últimos seis quilômetros, já nos Aparados da Serra, foram emocionantes. “Foi um processo de dias. Parecia um filme na cabeça, com cenas dos primeiros encontros, dos desafios superados, das amizades formadas. E no final, minha mãe e irmã vieram da Argentina para me surpreender com uma placa comemorativa. Foi lindo.”

Julieta é, oficialmente, a primeira pessoa a completar todo o Caminho da Mata Atlântica — uma trilha que ainda está em fase de sinalização e implementação. Sua experiência ajuda agora a fortalecer o projeto: ela segue percorrendo os núcleos da trilha ao lado do coordenador geral, Chico Schnoor, e participa de reuniões para ampliar as conexões do trajeto.


Além disso, já escreve um livro sobre a jornada. “Quero que essa história inspire mais gente. Porque caminhar também é um ato de conservação.”
Durante a trilha, ela também se tornou inspiração: “Conheci um caminhante que vai fazer o mesmo percurso que eu — só que no sentido inverso, do sul para o norte. Isso me emociona demais.”

O legado da trilha
O Caminho da Mata Atlântica não é só um percurso físico. É uma iniciativa de conservação de larga escala, que conecta áreas protegidas, comunidades, e projetos de reflorestamento ao longo de toda a Serra do Mar e parte da Serra Geral. São mais de 130 unidades de conservação envolvidas, 170 parceiros da cadeia produtiva, e milhares de voluntários.
A trilha é inspirada em modelos internacionais, como a Appalachian Trail, dos Estados Unidos, e hoje integra o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica. Em muitos trechos, como no Paraná e em Santa Catarina, ela também fortalece o turismo rural e a economia de base comunitária.
Julieta se vê agora como parte dessa missão. “Não pode terminar aqui. Percebi que ninguém cuida do que não conhece, então eu quero lutar pelo planeta, ensinar o que aprendi, cuidar desse chão que me acolheu.”

Como isso impacta a sua vida?
A jornada de Julieta não é apenas sobre superação pessoal, é um lembrete urgente de que preservar a Mata Atlântica é preservar também as nossas próprias histórias. Cada trecho da trilha revela o quanto estamos conectados à natureza mesmo sem perceber. A floresta está mais perto do que parece, está aqui, na nossa região, e ao caminhar por esse bioma, Julieta deixou rastros de inspiração e um convite: que a gente também se coloque em movimento — não necessariamente com os pés, mas com escolhas que respeitem e valorizem o que ainda temos de verde.
Gabriela Bubniak
Jaraguaense de alma inquieta e jornalista apaixonada por contar boas histórias. Tenho fascínio por livros, música e viagens, mas o que me move é viver a energia de um bom futsal na Arena e explorar o que há de melhor na nossa terrinha.