Cali e Mauri, os cabeleireiros catarinenses que reinventaram o conceito de beleza em Jaraguá do Sul

Juntos, eles não apenas construíram um negócio sólido e ético, como também deixaram uma marca cravada no mapa de Jaraguá do Sul. Um verdadeiro legado ancorado em três pilares que parecem simples, mas exigem uma força danada para manter de pé: respeito, propósito e uma carga considerável de trabalho bem feito — o tipo de trabalho que não aparece nas redes sociais, mas transforma vidas no dia a dia.
Notícias de Jaraguá no seu WhatsApp
Fique por dentro de tudo o que acontece na cidade e região.
Essa trajetória digna de série documental está contada em detalhes no episódio 6 do podcast O Investidor com Propósito, que mostra como a história de Cali e Mauri vai além do salão e se entrelaça com a própria transformação do mercado de beleza em Jaraguá. Mais que um relato de empreendedorismo, é uma prova viva de que dá sim pra empreender com alma.
O início da caminhada
Tudo começou em 1985, quando um jovem de 19 anos chamado Alencar Giovanela — ou Cali, para os íntimos — trocou o Meio-Oeste catarinense por Jaraguá do Sul. Recém-formado pelo Senac de Joinville, ele recebeu uma oportunidade de trabalho num salão e decidiu embarcar, ainda que sem muito glamour: foi morar nos fundos do próprio local, num quartinho apertado com fogareiro e tanque. Ali mesmo ele lavava, cortava, atendia e sonhava.
Criado numa família de seis irmãos e órfão de mãe desde os quatro anos, Cali clutava contra o destino que o pai havia traçado para ele: trabalhar na serraria da família. Ele queria algo diferente. Preferiu afiar as tesouras ao invés das serras e decidiu seguir por um caminho próprio, cuidando da autoestima das pessoas e oferecendo algo que ia além de cortes e penteados: cuidado de verdade.
Jaraguá no modo beleza
Nos anos 80, Jaraguá do Sul ainda era um território a ser explorado no que diz respeito à estética profissional. Foi nesse cenário que Cali chegou, trazendo um furacão de novidades: cortes inspirados em Fábio Júnior e Chitãozinho & Xororó, penteados estilo “pantera” de Claudia Raia, permanentes em cabelos longos e o famigerado gel New Wave, que parecia ter sido importado diretamente de alguma novela da época.
Cali não era só sobre tendências — ele já praticava visagismo numa época em que esse termo mal existia no vocabulário do público. Com um olhar clínico e sincero, ele sugeria o que realmente combinava com cada rosto e personalidade, criando experiências únicas para cada cliente. Foi justamente essa mistura de sensibilidade, verdade e atenção aos detalhes que fez com que ele conquistasse uma clientela leal e apaixonada. Famílias inteiras passaram a frequentar o salão, e quando ele finalmente abriu seu próprio espaço, isso ficou ainda mais evidente: não era apenas um lugar para mudar o visual, mas para se sentir bem e à vontade.
Entra em cena: Mauri
A trajetória dos dois se entrelaçou na vizinha Joinville, num concurso realizado numa boate gay onde Cali era jurado. Na passarela, Mauri, com 24 anos desfilava por incentivo dos colegas – mas no âmbito profissional ele tentava a carreira desenhista projetista — sonho do pai para ele. E foi ali, entre luzes coloridas e aplausos, que um viu o outro.
Nos fins de semana, Mauri começou a visitar Cali, lavando cabelos e ajudando onde dava. Foi então que Cali percebeu que havia ali um talento bruto, pronto para ser lapidado. Incentivado a fazer o curso de cabeleireiro, Mauri aceitou o desafio e nasceu ali não apenas uma parceria profissional, mas uma união pessoal que resistiria ao tempo e às dificuldades.
Quase quatro décadas juntos e, em 2012, veio a cereja do bolo: Cali e Mauri se tornaram o primeiro casal homoafetivo a ter a união reconhecida legalmente em Santa Catarina. O processo foi tão rápido, e teve ajuda de clientes do meio jurídico que, além de amigos, fizeram questão de contribuir com esse momento que, no fim das contas, também era sobre dignidade, amor e justiça.
Discretos por escolha, sempre optaram por manter a relação com uma postura profissional, focada no respeito mútuo e no cuidado com quem passava por ali. E foi justamente essa postura, mais do que qualquer discurso, que fez com que eles se tornassem figuras queridas e presença garantida em momentos importantes da vida de seus clientes. Se tinha formatura, casamento ou aniversário, é bem provável que Cali e Mauri estivessem por perto.
O salão virou point (e refúgio)
O primeiro espaço do “Cali Cabeleireiro” era ainda pequeno, mas o boca a boca fez o negócio ganhar corpo, respeito e fila de espera. Em pouco tempo, o salão mudou de endereço e foi parar em uma sala mais ampla, central, com estrutura para colocar em prática ideias que até hoje soam modernas: como o “Dia da Noiva” com tudo incluso — maquiagem, massagem, troca de roupa, fotógrafo e até banheira.
Com o tempo, cada um dos dois encontrou sua própria vocação: Cali mergulhou de cabeça nos procedimentos químicos e no atendimento feminino, enquanto Mauri virou referência no corte masculino. Mais do que um salão, o espaço virou um ponto de acolhimento emocional, onde além de mudar o visual, dava pra trocar uma ideia, chorar, rir e sair mais leve — por dentro e por fora.
Ética e planejamento
Cali aprendeu desde cedo que o dinheiro precisa de cuidado, e levava isso ao pé da letra. Antes de qualquer gasto, vinha o compromisso com as contas. “Minha moeda sempre foi o corte de cabelo”, conta ele. “Se eu queria algo, fazia as contas de quantos cortes precisaria para chegar lá.” Simples, direto e eficaz.
A base do negócio sempre foi sólida: ética, organização e foco total na experiência do cliente. Nada de fórmulas mágicas ou estratégias mirabolantes. Nada de empurrar produto só pra fazer caixa. Se não funcionava, ele dizia na lata. A confiança que isso gerou nos clientes não tem preço — e foi esse respeito pelo bolso alheio que ajudou a transformar o salão em um modelo de negócio simples, mas altamente eficaz.
Um novo ciclo, sem pressa
Em fevereiro de 2024, ao completar 60 anos de idade e 40 de profissão, Cali decidiu que era hora de mudar o ritmo. Junto com Mauri, fez uma transição planejada e consciente: menos correria e mais qualidade de vida. Fim dos eventos aos sábados, adeus às madrugadas puxadas e um novo olhar para o tempo, que agora é dividido com mais tranquilidade e foco em outras coisas também importantes na vida pessoal deles.
O salão continua funcionando de segunda a sexta, com a mesma essência de sempre. Os atendimentos são personalizados, o acolhimento segue forte e Silvia — a fiel escudeira que está com eles há quase 20 anos — segue firme, garantindo que tudo funcione como deve. “Não paramos porque amamos o que fazemos. Enquanto houver saúde, prazer e propósito, estaremos aqui”, diz Mauri. E não é difícil acreditar nisso.
🎧 Ouça o episódio completo do podcast aqui:
Como isso impacta sua vida?
Se você vive em Jaraguá do Sul e ainda não conhecia a história de Cali e Mauri, considere isso um presente. Essa jornada vai muito além dos espelhos do salão — é uma lição sobre afeto, ética, resiliência e beleza em todas as suas formas. Em tempos de pressa e promessas vazias, eles mostram que é possível construir algo duradouro, significativo e humano. O salão deles é, sim, um espaço de estética — mas, acima de tudo, é um templo de cuidado, propósito e respeito mútuo.
Gabriela Bubniak
Jaraguaense de alma inquieta e jornalista apaixonada por contar boas histórias. Tenho fascínio por livros, música e viagens, mas o que me move é viver a energia de um bom futsal na Arena e explorar o que há de melhor na nossa terrinha.