Tecnologia

A primeira censura na internet que mudou a rede para sempre

Esta é a história de uma guerra travada logo nos primórdios da internet

28/10/2022

Tudo começa quando Brad Templeton, um designer de software, publicou, em 1988, uma piada tida por ofensiva por pessoas em um fórum de discussões na internet — e se torna a primeira pessoa a ser denunciada publicamente (ou “cancelada”) por algo que fez online.

 

Na década de 1980, antes da invenção da www (World Wide Web), havia uma rede de comunicação por computador chamada Usenet. Era uma plataforma que permitia a troca de mensagens em fóruns agrupados por assunto, usada pelo relativamente pequeno número de pessoas que tinham acesso a computadores em instituições acadêmicas e tecnológicas – e que sabiam de sua existência. Gente como Brad Templeton, que até então usava o computador apenas para jogar e fazer planilhas.

 

“Era como uma praça. Todas as noites, seu computador ligava para outros computadores e ligava tudo de novo com eles, e então você podia conversar com pessoas de todo o mundo.”, conta Brad Templeton.

 

Templeton acessou a Usenet por meio da Universidade de Waterloo, no Canadá, onde havia estudado, pois não era algo que alguém pudesse se conectar de casa. Normalmente, um computador era necessário em um laboratório, empresa de informática ou universidade.

Para se ter uma ideia , certo dia, em 1982, Brad postou uma mensagem sugerindo que os e-mails seriam mais fáceis de ler se tivessem um ponto. Outros membros concordaram, e é por isso que nossos endereços de e-mail agora terminam em “.com”.

Mas Templeton queria usar a Usenet de forma “mais divertida” , então ele criou seu próprio quadro de mensagens dedicado ao humor, chamado rec.humor.funny (RHF), que rapidamente conquistou milhares de assinantes.

 

Uma piada por dia

As pessoas lhe mandavam piadas e as que ele achava mais engraçadas passavam a fazer parte de uma coleção da qual seu computador escolhia aleatoriamente uma e publicava todas as manhãs.

 

E um dia, uma delas fez dele um tipo diferente de pioneiro – a primeira pessoa na história a ser publicamente denunciada por algo que fizera online.

 

“Era uma piada baseada em estereótipos judeus e escoceses. E a aleatoriedade do computador optou por lançá-la em um dos aniversários da Kristallnacht, a Noite dos Cristais.”

 

 

A história

Na noite de 9 para 10 de novembro de 1938, nazistas e simpatizantes vandalizaram ou destruíram lojas pertencentes a judeus na Alemanha e na Áustria. Por causa do intenso barulho de janelas sendo quebradas, essa noite passou para a história como Noite dos Cristais.

 

E como era ‘piada’
“Um escocês e um judeu estão jantando juntos e na hora que chega a conta, há uma certa surpresa quando o escocês diz, ‘eu pago’. E daí ele paga. No dia seguinte, sai no jornal uma notícia dizendo que um ventríloquo judeu foi encontrado estrangulado num beco”, conta Brad Templeton.

“O fato é que, quando a piada foi divulgada, ela enfureceu um colega judeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology)”, disse Templeton.

Esse judeu era um britânico chamado Jonathan Richmond. Ele morava no MIT com outro britânico que se lembra bem do incidente. Esse outro britânico é hoje é um executivo muito bem-sucedido e não quis ser identificado (será chamado pelo pseudônimo de “Amir”).

 

“Éramos ambos sensíveis ao racismo e ao antissemitismo, por isso não era incomum sermos incomodados por esse tipo de coisa. Mas essa piada em particular nos afetou pessoalmente. Além disso, havia algo muito importante na data, pela Kristallnacht”, contou Amir.

 

É por isso que Jonathan e Amir também se tornaram pioneiros – ninguém jamais havia tentado disciplinar o mundo online antes. Jonathan fez um apelo à comunidade da Usenet, escrevendo que geralmente gostava de piadas que o faziam rir de si mesmo, mas que não podia tolerar o humor preconceituoso associado a perseguição e assassinato.

Mas as pessoas da Usenet reagiram chamando ele de um nerd que deveria aprender a “rir de si mesmo” e quase ninguém ficou do lado dele.

Amir, entretanto, explicou por que ficou ofendido pela piada. “Meus pais vieram da África Oriental para o Reino Unido na década de 1960, quando havia placas nas janelas de casas e empresas anunciando que asiáticos e negros não eram aceitos. Fui atacado várias vezes nas ruas. Finalmente nos mudamos para o Canadá na década de 1980, em parte porque estávamos fartos dos abusos racistas.”

Coincidentemente, antes de ir para o MIT, Amir frequentou a mesma universidade onde Brad Templeton postava suas piadas.

A Universidade de Waterloo costumava ser um banco de talentos.

“Além disso, era responsável por enviar mais graduados para a Microsoft – que era a maior empresa da época – do que qualquer outra universidade do planeta”, disse Amir.

Assim, pareceu a Amir e Jonathan que a coisa toda era um mau presságio. Um tom estava sendo estabelecido naquele novo mundo que poderia afetar as gerações futuras.

 

“Eu sabia que minha universidade tinha um grande papel em todo o espaço da tecnologia da informação e que se algo assim não fosse controlado, teria um grande impacto negativo também, então teve que ser cortado pela raiz”, diz Amir.

 

Mas suas tentativas tinham falhado até agora. Que recurso eles ainda tinham?

Eles tiveram a ideia de aproveitar a visita de Amir à namorada em Waterloo para conversar com o jornal local.

 

“Lembro que quando li essas piadas fiquei com o estômago embrulhado”, contou a repórter Luisa D’Amato, que trabalhava no jornal Waterloo Region Record.

 

Ela tinha vasculhado o fórum de discussões do Brad e achou outras piadas que a deixaram bem abaladas. “E lembro de pensar ‘Meu Deus, não tem ninguém no comando. Se você não gosta de algo que um jornal escreve, por exemplo, é possível entrar em contato com uma entidade maior que regula a mídia. Mas nesse caso não havia nada parecido. Era como no Velho Oeste.”

Depois de investigar, Luisa publicou um artigo intitulado “Sistema de computador da Universidade de Waterloo é usado para enviar piadas racistas”.

Brad contou que “foi constrangedor para a universidade. Eles não gostavam de estar na primeira página do jornal como envolvidos em racismo horrível e antissemitismo”.

Mesmo assim, ele foi inundado com mensagens de apoio de usuários da Usenet. Recebeu, também, uma carta de um homem que dizia ser um nazista que havia lutado por Hitler e vivia no Canadá, e que disse “achar ótimo” que as pessoas estavam fazendo piadas sobre judeus.

 

“A universidade anunciou quase imediatamente que não toleraria ser um centro para esse tipo de material ofensivo e suspendeu a conta de Brad Templeton”, diz Luisa.

 

“Eu estava atormentado, não conseguia dormir bem”, diz Templeton. Mas a vitória de Jonathan e Amir durou pouco.

 

Nada para fazer

“Essa foi a primeira vez que vi alguém em uma posição de autoridade tentando banir algo na Usenet, e lembro-me de ter pensado: ‘Que idiotas! Eles acham que podem banir. Não vai funcionar'”, disse o pioneiro da Usenet e cientista da computação Brian Reed, que na época era professor assistente de engenharia elétrica na Universidade de Stanford, no coração do emergente Vale do Silício.

 

“Todos os tecnólogos entenderam que a internet não tinha censura. Foi projetada para ser assim. Se você fosse proibido de fazer algo, nada mudaria porque outras cem pessoas continuariam com a tarefa.”

 

Vários usuários da Usenet se ofereceram para hospedar o site de Templeton, que ele reativou imediatamente. Mas a batalha não tinha acabado.

 

Enquanto isso, na Califórnia…

O destino desta piada antissemita estava prestes a ser alvo de nova disputa, desta vez na Universidade de Stanford, onde o veredicto afetaria a vida de todos que já usaram as redes sociais.

Na década de 1980, o campus de Stanford era um lugar bastante progressista. Havia o jornal universitário Stanford Review e seu editor, Peter Thiel, mais tarde fundador do PayPal, e também um dos primeiros investidores no Facebook, Airbnb, LinkedIn, Yelp e Spotify, que por décadas personificaria a cultura libertária do Vale do Silício.

Nas páginas do jornal, ele e sua equipe lamentavam o politicamente correto, em meio a um clima tenso, de constante confronto de opiniões.

Certo dia uma usuária da Usenet chamada June Janice, que trabalhava no Centro de Computação da Universidade de Stanford, se conectou à plataforma para ver a piada do dia de Brad Templeton.

Foi a piada antissemita. “Achei ela engraçada e então começou todo o alvoroço para saber se aquele tipo de material deveria estar ali”, disse June.

Para ela, o fechamento do site de Brad por causa da piada era “ridículo”, e ela contou isso a seu chefe John Sack, o diretor do Centro Computacional da Stanford, pensando que ele provavelmente também acharia aquilo uma tempestade em um copo d’água.

Mas Sack achou que o caso era sério, e que caberia a ele pensar em como a universidade deveria reagir à piada. Ela deveria mantê-la ou bani-la? O que pôs John Sack, dado que estávamos em Stanford no fim dos anos 1980, em um momento chave da história.

 

Segundo Sack, “o uso de computadores estava começando em um contexto social, então estávamos navegando nas áreas cinzentas de quanto permitir que o computador fizesse por e para as pessoas”.

 

A piada de Brad Templeton seria o caso piloto perfeito. Os engenheiros de computação – os arquitetos da emergente internet – estavam assistindo. “O curso não estava claro. Eventualmente, teríamos que tomar uma decisão.”

 

O ponto final

Após semanas de deliberação, foi anunciado que a página de Brad também seria banida em Stanford. O motivo foi explicado em um ensaio detalhado. Resumindo, ele dizia que “o amor de Stanford pela liberdade de expressão” importava menos que “a busca coletiva por uma maneira melhor de reconhecer cada pessoa um indivíduo, não uma caricatura”.

 

A decisão, entretanto, causou grande indignação em um professor titular de Stanford, John McCarthy, acadêmico tido como um dos maiores nomes da computação na época e um dos fundadores do conceito de inteligência artificial.

 

McCarthy estava horrorizado com a ideia de que normas regulando a expressão se tornassem a regra na internet. Ele publicou uma réplica feroz ao banimento, chamando John Sack de “lacaio” que havia passado aquelas semanas não deliberando, “mas perdendo tempo”. Ele também lançou um abaixo-assinado online, um dos primeiros na história da internet, juntando 100 assinaturas na faculdade. Na época, assim como em muitas casos hoje, o abaixo-assinado online teve um grande efeito. O banimento da página de piadas de Brad foi rapidamente revertido.

O argumento de John McCarthy, acredita John Sack, podia ser resumido assim: “Estamos explorando a vanguarda da computação aqui. Vamos continuar explorando, não tente interromper isso. Basicamente, precisamos descobrir as fronteiras da livre expressão trombando com elas ou as atravessando”.

 

Via BBC

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