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Coluna: Onde estão as flores de dona Vicentina?

O muro está alto e não há nenhuma abertura visível para ver se sobrou alguma coisa das flores do passado. Tomo coragem e me dirijo a um homem que passava na hora, para saber quem mora lá. Conto das orquídeas, das rosas e seus perfumes…

27/09/2020

CONTO

Por Sônia Pillon

A minha melhor amiga sempre foi a Afonsina, que estudava na mesma escola, só que um ano na frente. Era o início dos anos de 1950 e a cidade era bem mais pacata do que hoje. Sim, porque naquela época, com essa idade, ainda brincávamos de bonecas! Bons tempos…A Afonsina ficou órfã muito cedo e foi criada pela avó Vicentina, que tinha múltiplos talentos. Era uma típica senhora “prendada”, como se dizia na época. Ela dava um show na cozinha, fazia doces e compotas caseiras como ninguém e ainda era exímia no tricô, crochê e bordado…

Porém, o que mais causava admiração pela dona Vicentina, além dos limites do portão, eram as orquídeas que cultivava… mais do que as rosas, que além de adornar o jardim, tinham o poder de atrair abelhas e borboletas. Ah, e cigarras também!

Por sinal, a Afonsina sempre contava que, quando o sol da manhã irradiava luz, não raro assanhava as cigarras, que vinham cantar na sua janela. Faziam o papel de despertador ecológico, só que com um toque poético… Na época eu frequentava a casa dessa minha amiga, especialmente antes das provas de matemática… Por isso, perdi a conta das vezes em que acompanhei os cuidados da avó dela com suas relíquias vivas, coloridas e perfumadas.

Depois que terminamos o primário, “adolescentamos”, como diria o nosso professor-poeta Aderbal. Amadurecemos e a vida de cada uma seguiu seu curso. Soube bem mais tarde que, com a morte de dona Vicentina, aos setenta e poucos anos, os parentes “reapareceram” e, depois de muita briga pela herança, a casa foi finalmente vendida… Afonsina pouco depois casou e foi morar no Rio. Perdemos o contato, infelizmente.

Essa semana senti uma nostalgia me apertando o peito. Esse meu reumatismo vive me pregando peças, mas ontem acordei e decidi dar uma volta. O meu filho e a minha neta vivem se oferecendo para me levar para lá e para cá, mas não quis incomodar. Peguei a bengala e, decidida a ir sozinha, chamei um táxi. Pedi que o motorista me levasse no bairro onde morava a minha amiga de infância. Fiquei rememorando durante o trajeto, respirando passados… Vida correu, tropeçou, caiu e se levantou, assim como eu. Águas rolaram, rolaram, rolaram por debaixo da ponte…

Enfim, chegamos defronte à antiga casa de dona Vicentina e da minha amiga Afonsina. Desço devagar, me amparando na porta do táxi, e o meu coração começa a bater mais forte. Quanto tempo! Senti as lágrimas querendo transbordar, mas segurei o máximo que pude. Mesmo assim, senti que o olhar do taxista identificou a minha emoção, discretamente.

O muro está alto e não há nenhuma abertura visível para ver se sobrou alguma coisa das flores do passado. Tomo coragem e me dirijo a um homem que passava na hora, para saber quem mora lá. Conto das orquídeas, das rosas e seus perfumes… Com olhar malicioso, ele me responde que ali, hoje, “as únicas flores existentes são as que desabrocham com as luzes vermelhas da noite”… Décadas se passaram. Vida correu. Tudo mudou.

Por

Sônia Pillon é jornalista e escritora, formada em Jornalismo pela PUC-RS e pós-graduada em Produção de Texto e Gramática pela Univille. Integra a AJEB Santa Catarina. Fundadora da ALBSC Jaraguá do Sul.

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